Friday, August 30, 2013

De pai para filho

Era Natal de 85.

Meu filho já sabia andar e começava a desembestar a correr. Jogar bola com ele me fazia sentir como estar talhando o talento de um novo Messi. Achei então que era chegada a hora da tão sonhada bicicleta. Eu havia planejado este presente com ele o ano inteiro. Na hora de comer, o Papai Noel estava olhando. Na hora de dormir, o Papai Noel estava olhando. Na hora do banho, o Papai Noel estava olhando. O Papai Noel nunca viu chantagem. O Papai Noel sempre via quando comia tudo, quando dormia sem chorar e quando saía cheiroso do banho. O Papai Noel era tão legal, que no Natal ele ia até a casa das pessoas entregar pessoalmente um presente personalizado para todas as pessoas a quem olhava. Bastava apenas enviar uma carta dizendo o que queria e o porquê. Convencido de que a carta já estava no Polo Norte, a bicicleta amanheceria em baixo do pinheirinho. Na manhã seguinte, uma euforia invadiu minha noite ainda mal dormida, após as festividades natalinas em família. Pulava sobre a minha barriga como se estivesse em uma cama elástica! A felicidade ainda não conseguia sair em palavras. Com o decorrer do dia, eu quase morri de tanto correr para cima e para baixo empurrando aquela bicicleta. E assim foi até o fim do ano. Todo santo dia! Na varanda da vó, no domingo no parque, na garagem de casa. No dia seguinte após o réveillon, achei que já era hora de tirar aquelas rodinhas. Tirei uma e passamos a semana criando coragem para também tirarmos a outra. Criamos todo um momento especial para a retirada da segunda rodinha. A mãe dele filmava toda a alegria e incentivo que estavam no ar. Era um dia de festa. Um dia muito especial. Fomos lá então. Corri. Empurrei. Me certifiquei de que já estava seguro. E sem ele perceber eu o soltei. Dois metros depois, quando meu orgulho de pai já não cabia mais em mim, o guidão foi prá lá, pra cá, prá lá e pra cá cada vez mais rápido até a bicicleta, como um touro mecânico, o arremessar de frente no chão. O capacete protegeu a cabeça, mas o estrago foi grande. O trauma foi duradouro. Como pai, me senti mal em não ter corrido até o fim, mesmo que ainda houvesse fôlego. E então deixamos a bicicleta de lado, por um bom tempo. Voltamos ao futebol no quintal e outros passatempos. Mas eu não parei de pedalar. E todo final de semana que íamos à casa de praia, eu ia de bicicleta. Caminhando pelo calçadão em uma tarde de sol, ele viu uma garotinha, que pedalava de um jeito que parecia chacoalhada pelo vento. Olhou para mim e perguntou se eu não o ajudaria de novo. Eu respondi que sim. E que desta vez a gente conseguiria! Hoje, dificilmente eu estaria pedalando tanto se não houvesse o seu incentivo em me acompanhar na decida da serra. 

Thursday, August 29, 2013

Não foi por falta de aviso

Sujeito chega no balcão: 
- eu gostaria de um produto. 
O vendedor: 
- nacional ou o importado?
- qual a diferença?
- o nacional custa x e o importado custa 3x.
- mas por que tanta diferença?
- o importado tem mais qualidade. As normas internacionais são mais rigorosas e eles já desenvolvem essa tecnologia há muito tempo.
- ah, entendi. Mais caro, mais qualidade!
- na prática sim, mas na verdade não. O importado é mais barato que o nacional. Mas o governo taxa de impostos para incentivar a venda e a produção nacional. Com o dinheiro dos impostos ele investiria na pesquisa e desenvolvimento para o registro de patentes, mas isto não acontece porque a educação básica não funciona. O governo também alivia o rigor nas normas técnicas para diminuir os custos de produção e manter a concorrência favorável a nossa balança.
- nossa, mas eu só preciso de um produto, não de todos esses encargos.
- pois não doutor. O senhor prefere o nacional ou o importado?

Tuesday, August 20, 2013

COLÍRIO

Em terra de cego, andava como invisível. As roupas não tinham as cores da moda e o corte do cabelo não era definido. Seu andar corcunda não chamava a atenção. A forma física e a pele brilhosa lembravam a uma coxinha. Era reconhecido pelo tom de voz e o sotaque curitibano. Preocupava-se basicamente em andar perfumado e em manter um bom hálito. Nas palestras era pontual e fazia questão de ser bem interpretado. Cansado de ser invisível, optou por mudar-se. Mas as roupas não tinham as cores da moda e o corte do cabelo não era definido. Seu andar corcunda não chamava a atenção. A forma física e a pele brilhosa lembravam a uma coxinha. Era reconhecido pelo tom de voz e o sotaque curitibano. Cansado de ser invisível, optou por mudar-se. Voltou às palestras, mas agora passou a cuidar-se. Consultou a todas as especialidades da medicina e mudou seus hábitos alimentares. Parou de fumar e passou a fazer exercícios. Hoje, as roupas ainda não têm as cores da moda, mas o corte do cabelo já conta com pelo menos uma penteada antes de sair de casa. Seu andar corcunda foi corrigido na fisioterapia. A forma física é saudável e a pele parece de uma pessoa mais nova. Na saída da palestra, ouviu um elogio ao tom de voz e ao sotaque curitibano. E o invisível passou a ser ouvido.

Friday, August 16, 2013

#32

Seria o amor algo indolor
Se não fosse amor
Porque toda dor
Ou tem cura, ou tem ardor.

Tuesday, August 13, 2013

Sem chance

Obstinado, tinha dificuldades com o amor e o sucesso. Era obstinado demais pelos dois. E os dois eram obstinados por ele. Obstinados, não conseguiam se dar bem, o amor e o sucesso obstinados. 

Monday, August 12, 2013

Boa viagem

Via a vida como uma vitrine. E sem dinheiro, via na vitrine uma barreira. Mas gostava de admirar as ofertas, o movimento dos clientes, a vendedora maquiada. Alguma coisa naquela vitrine lhe chamava a atenção. Prendia sua vista. Tomava o seu tempo. O fazia esquecer de piscar os olhos. Aquela vida, aquele mundo, que existiam do outro lado daquela vitrine, pareciam ser onde queria estar. E todo dia ele ia lá e ficava admirando até as luzes se apagarem. Num desses dias, a vendedora maquiada lhe olhou, sorriu não mais que o habitual e foi até a porta em sua direção. Perguntou se ele não gostaria de entrar, apenas para conhecer a loja. Levemente envergonhado, achou muito cordial da vendedora maquiada e aceitou o convite. Maravilhado, olhou tudo. Experimentou tudo. Tocou em tudo. Mas não levou nada. Agradeceu à vendedora maquiada que lhe atendeu com muita atenção e partiu ao apagar das luzes. No dia seguinte, ele chegou ao seu ponto rotineiro de observação e reparou que havia um papel na vitrine, anunciando uma vaga de emprego. Ele não pensou duas vezes e entrou. Falou com a vendedora maquiada, que falou com a gerente, que falou com os donos. Ele estava contratado. Seu trabalho era manter a vitrine limpa. De fora, via a vida do lado de dentro. De dentro, via a vida do lado de fora. E no apagar das luzes, agora recebia dinheiro. Depois de alguns dias de trabalho, em seu dia de folga, voltou à vitrine mas não parou. Entrou direto e saiu com a sua primeira compra. Incontrolavelmente feliz, convidou a vendedora maquiada para um café no intervalo. Outro dia a convidou para o cinema. Enquanto isso, a limpeza da vitrine aumentava as vendas. E ele já não sabia mais o que era a vitrine. Aquele vidro, que era limpo por dentro e por fora, que de um lado era feliz e do outro também, agora é só um vidro. Que ele só que manter limpo. Por dentro e por fora!