Monday, March 08, 2010

Tiro e queda

Dona Jurema e Seu Adamastor tiveram três filhos sem a chance de vê-los adultos. A mãe sofria de diabetes e entregou o destino ao pai aos 39 anos, que veio a falecer de tuberculose logo mais, aos 43. Ambos tinham a mesma idade e deram aos filhos uma diferença de um ano para cada. Já crescidos, não moravam mais com a tia que os adotou e havia ficado caduca desde então. Um deles tentou de toda sorte para ter a vida que os irmãos construíram. Estudiosos e trabalhadores, os outros dois irmãos iniciavam uma carreira de sucesso no jornalismo e na advocacia. O país não passava por um momento muito democrático e as instituições se enfraqueceram. Com a censura os jornalistas perderam a voz e o emprego. Os advogados não tinham mais serventia no atual modelo jurídico. Coube então ao irmão do meio, como num passe de mágica, solucionar os problemas da família com um plano infalível. Como seus irmãos gozavam do sucesso, aproveitou-se de suas influências para assaltar um banco. Na fuga foi baleado, rendido e levado preso. Os irmãos, que já sabiam que tudo fazia parte do plano, assumiram seus papéis. O jornalista filmou tudo e o advogado acusou a polícia de abuso do poder. O processo ganhou à mídia e transformou o bandido em mocinho, tamanha era a revolta da população com as atitudes traumáticas dos homens de farda. Uma passeata organizada pelos estudantes pedia a anulação do caso já que o dinheiro do roubo nunca fora encontrado. Passados alguns anos de julgamentos o réu obteve sua condicional e foi morar com a tia caduca. Ela estava junto no dia do roubo e guardou consigo o dinheiro na mesma bolsa que carregava suas bolas que treinava bolão no clube Operário. A bolsa se encontrava intacta em cima do guarda-roupa infestado de cupins. Ligou para os irmãos, pegaram um avião para Nova Iorque, onde viveram em paz como Operador financeiro, Agente imobiliário e Empresário do ramo fonográfico. Voltaram ao Brasil em 2009 endividados com a crise que arrasou a economia mundial. Hoje vivem com a pensão do marido da tia, um ex-combatente na Normandia.

Wednesday, March 03, 2010

Invencível

Saí a caminhar, tentando fugir da saudade que divide o aluguel comigo.
Com um maço de cigarros no bolso e um isqueiro falhando. A cada posto uma cerveja.
Passa o ciclista, buzina o taxista. Freia a tia em cima do vira-latas assustado com o biarticulado atrasado.
Se põe o sol e continuo a caminhar, tentando fugir da saudade que insiste em me seguir.
Sigo sentido norte, onde uma pedreira desativada parecia ser o local perfeito para um destino. Caminho ligando os pontos que os postes iluminam sem me preocupar com eventuais interessados em furtos, a fim de que me roubem a saudade à mão armada.
O movimento nas ruas já não é mais tão frenético e o silêncio começa a virar a trilha sonora desta perseguição.
Alguns insetos tentam espantar a saudade num ataque quase sempre suicida.
E continuo a caminhar.

Ao chegar, me aproximo do abismo que havia entre o passado e o futuro.
Sem mais ter pra onde andar senti que a saudade já dividia o meu momento particular.
Percebi que há tempos ela o fazia.
Começamos a discutir a nossa rotina e a nossa história.
No calor da ira trocamos socos e duros golpes na memória.
Rolamos no chão feito gato e novelo.
Até que o meu chão acabou e o abismo me sugou.
Ainda deu tempo de a saudade estender a mão e me segurar.
Era chance de eu me salvar e sobreviver.
Mas quem estaria a salvo seria a saudade e eu não sobreviveria.
Me fiz escorregar para sempre te esquecer.
Só não sabia eu que se torna a saudade quem de nós parte.