Friday, June 30, 2006

Apocalipse now

Pensei ter chegado o grande dia. Podia ouvir os anjos tocando as trombetas anunciando o apocalipse. Eram bem mais que sete. Eram muitos os anjos. Eram muitas as trombetas. Como eu não me vestia de laranja e não era careca com um rabinho de cavalo na nuca, sabia que não seria um dos escolhidos. Aproveitei para sair à janela com toda a virilidade e astúcia enérgica que um impaciente teria ao ser acordado por malditos anjos tocando trombetas. A polícia já havia proibido o som alto que saía dos porta-malas, mas nada de proibir trombetas. Enfim, fui à janela, como disse, e num grito de engasgar trombeta, gritei aos anjos: “ENFIEM ESSAS PORRAS DE TROMBETAS NO MEIO DO CÚ E EXPLODAM, SEUS FILHOS DA PUTA!”.

Nunca apanhei tanto na vida.... nem mesmo quando quebrei o vaso de porcelana jogando bola na sala de casa. Mas que culpa eu tenho em não gostar de futebol? Por que deveria saber que estavam comemorando o tal do hexa-campeonato? Malditas trombetas...

Saturday, June 17, 2006

Números Complexos

Hoje cedo, saindo de casa, um gato branco atravessou meu caminho. A previsão do tempo já havia me alertado sobre a entrada da frente fria. Um senhor que caminhava logo a frente deixou cair um papel. Assim que peguei, gritei para alertá-lo. Infelizmente, como tampa de caneta, sumiu rapidamente sem que pudesse fazê-lo. Só poderia certificar-me da importância do papel abrindo-o. Percebi que era uma espécie de mapa. Me guiava por aquele mesmo caminho até duas quadras adiante, quando eu deveria virar a esquerda e descer na estação do metrô. Havia também um horário: 13h45. Também uma espécie de senha: 06. Achei que fosse importante e segui o mapa pensando em seguir o senhor, podendo assim devolver o mapa. No horário marcado cheguei à estação. Entrei no metrô que aguardava. Entrei na sexta porta, pensando na "senha". Nada acontecia e na sexta estação desembarquei. Um rapaz franzino, com uma camiseta vermelha estampada com uma estrela de seis pontas amarela olhava atentamente para a sexta porta da qual desci. Cheguei para ele e disse: "seis"! "nove", respondeu. Achei estranho, pois não sabia o que dizer.... mas fui obrigado a dar muita risada. Ele manteve-se sério e indagou-me: é o seis? Sou o nove. Onde está o primo? Primo? Que primo? O dezessete. Puxou um telefone celular e me deu. Quero que o encontre, disse. Estarei na fila do Mc Donalds. Não perca a hora. Entrou no mesmo metrô e desapareceu. Neste instante pensei estar louco, esquizofrênico, paranóico ou algo parecido. Nada fazia sentido. Porque? Porque eu deveria encontrar o dezessete? Fui à rua, parei, olhei, escutei e assim que passou o trem algo me disse: décimo sétimo vagão! Contei e não tinha nada. Provavelmente não tinha nada a ver. Lembrei do celular. O que fazer com o celular? Fui para a agenda e todos estavam listados por um número. Primeiramente liguei para o seis. Algo vibra em meu bolso. Não. Não podia ser verdade. Mas era. Liguei para o dezessete. "Número inexistente". Eu insistia em discar e a gravação insistia e me dizer. Mas em qual Mc Donalds encontrar o nove? Não sei porque, mas fui direto a polícia. Contei a história ao delegado. O delegado me levou ao xadrez e me apresentou o numero um. Primeiro eu queria abraçá-lo, afinal era o "número um"! O delegado me pediu o celular. O número um disse que não podia ajudar, pois depois do "dois" ele foi preso e perdeu o total controle da situação. Era a hora de encerrar aquilo. Na verdade, nada tinha motivo ou ligação. Era apenas uma forma de intriga. Um jogo de dependência, no qual o número um era o único que ganhava, pois todos iriam a um local de encontro e pagariam a ele por uma passagem de volta. Mas como o mapa? O telefone? Descobrimos que o dezessete não existia. Tínhamos que inventa-lo e aguardá-lo no local combinado. Assim fizemos.
Na manhã seguinte, o carteiro deixa uma carta na caixa de correio do dezessete. Ele havia ganhado um brinde na loja de esportes da cidade. Surpreso e feliz chega ao estabelecimento e realiza a troca. Recebe como brinde uma camisa da seleção brasileira número dezessete nas costas e uma entrada para o teatro: 21h, poltrona 17 J. Presenteado, o dezessete foi à peça. Na poltrona 21h havia a mais linda mulher que pudera ter nascido. Ao fim da peça ela dirigiu-se ao Mc Donalds próximo ao teatro e pediu um número dois. Ele chegou ao lado dela e pediu um número quatro. O número nove aguardava na fila. A mulher disse que havia reparado nele na peça e pergunta onde estava sentado. Ele responde: 17 J. O número nove me chama e nos aproximamos do dezessete. O senhor não é felizardo da loja de esportes? Sim, acho que sou. Quer concorrer a outro bilhete de sorte? Vendemos rifas de festa junina para a Associação das Beatas Franciscanas da Comunidade do Rio do Bambuzal. O sorteio dará uma TV de plasma de 21 polegadas. O dezessete compra o bilhete, o lanche e a vinte e um. O nove me parabeniza e me agradece. Me dá uma percentagem, uns tapinhas nas costas que não quis contar e como uma tampa de caneta, desaparece na multidão.

Monday, June 05, 2006

Um nó

“O mapa está errado! O mapa está errado!” repetia Lincon. “Como? Como?” Repetia Mara. “Não sei, não sei, mas este rio não está no mapa... não sei onde estamos... o mapa está errado!” “Como? Como?” estacionaram o jeep, olharam ao redor. Nada parecia com o roteiro que haviam planejado. Voltar? Começaram a abrir a mata, e próximo ao rio armaram a barraca. O som da natureza silenciava o casal, recém casado. O sol se pôs, e uma lua laranja de proporções imensas começou a invadir o céu. As estrelas pareciam purpurinas no lençol negro que os cobria. Pássaros de espécies raras para um leigo cantavam a serenata que embalava o amor de Lincon e Mara. Aos poucos a fogueira que haviam feito para se esquentarem e espantar animais selvagens foi se apagando a medida que o sono os dominava. Ao acordarem, um banho nu no rio e algumas dúvidas: o que fazer nos próximos 5 dias? Não havia ali perto, a princípio, local para a compra de comida, artigos de higiene ou mesmo distração. Optaram por encarar a aventura. Ficaram por ali pelos próximos 5 dias, economizando alimento, banho de ri, pouca distração, muito amor e muita leitura dos livros que levaram. O tempo colaborava com um calor ameno, uma brisa que só o interior da Mata Atlântica proporciona, com o ar mais puro que os pulmões podem respirar. Uma chuva caia ao fim das tardes, dando de beber às raízes fortes que alimentavam os pássaros que fomentavam o desenvolvimento. O diálogo aos poucos foi se esgotando ao passo que os assuntos eram infinitamente explorados. O humor já não era o de uma criança no parque de diversões. Nos livros eram felizes para sempre, mas a vontade era mesmo a de fumar tudo o que haviam levado e esquecer a impaciência de não ter paciência. Os dias e as noites já não tão indiferentes. Alguns passeios curtos pela mata, banhos de rio, músicas no violão... e a desilusão de não estar feliz. Ao fundo a preocupação era a de viverem o que haviam planejado: fotos juntos em famosos pontos turísticos pelo mundo, um apartamento moderno, um carro para cada, jantares a dois, cinemas, teatros, amigos, filhos e o desabafo do stress após um dia tenso de trabalho. Nada disso acontecia naqueles cinco dias de recém casados.
- “A culpa é sua que não sabe ler um mapa!”
- “ah, ta! E placa, você sabe?”
- “como você não sabe fazer um bife?”
- “e seu ovo, então, é pior que o da empregada que tive aos nove anos...”
- “Sério, se for assim pra sempre, não vai dar”
- “concordo, não vai dar... nem pro mesmo time torcemos”
- “ai não, né? nem venha, nem a pau que mudo de time ou ir ver o seu jogar”
- “Mas eu te amo tanto....”
- “será? Eu já não sei se era amor...”
- “o que?”
- “é, é isso mesmo. Não é isso que quero pra mim. É melhor tudo acabar agora que ficarmos nos desgastando tentando uma coisa que nunca vai dar certo. Foi muito bom você não saber ler mapa, porque já vi que nunca ia dar certo”
- “me ajude a desmontar a barraca”
- “apague a fogueira”
- “não esqueça as suas roupas perto do rio”
- “junte o lixo ali do lado”
Entaram no carro, voltaram para casa. Cada um para sua casa, para nunca mais se verem.

Pois é.... também fiquei de cara.