Sunday, October 25, 2020

Registros de Pandemia

Eu já sabia da sua fama. Tinha escutado muitas de suas histórias, mas nunca as levei a sério ou as ouvi com a devida atenção. E também nunca, absolutamente nunca, passou pela minha cabeça de que um dia fôssemos apresentados, tão pouco ficássemos amigos. 

E esse afastamento era meu ponto de segurança para que a desconfiança fosse legítima. Ou, principalmente, que me permitisse julgá-lo. 


E assim foram os anos. Na escola, você estava lá, como professor, mas eu não misturava sua ideologia a minha formação.


Estava lá, nos almoços em família, mas eu não misturava sua tradição a minha formação.


Estava lá, nos meus desafios, mas eu não misturava fé às minhas obrigações.


Até que um dia tivemos o primeiro contato. Uma pessoa em comum, da minha mais alta importância, nos apresentou. Você me cumprimentou e respeitou minha desconfiança. Não conversamos, não trocamos contatos, tão pouco fui stalkear seu perfil para saber sobre suas histórias. E assim o tempo passou. Passaram-se anos. Até que um dia procurei ajuda para superar um problema. E quando cheguei lá, você estava lá. E então deixei de desconfiar. Você me viu entrar, eu também te vi, trocamos olhares de quem sabia que um dia já havia sido apresentado, porém foram olhares de quem sabia que não havia intimidade. Poderia, inclusive, facilmente um de nós ter esquecido desse encontro. Mas não pude esconder minha surpresa em saber que ali também era seu local de trabalho.


Anos se passaram e sempre fui muito bem atendido por seus assistentes. Entendia que meus problemas eram poucos para chegarem até você. Inclusive eu não fazia ideia de como se chegava até você.


Até que um certo dia, no elevador, conversando com a vizinha, eu relatei as dificuldades que eu passava na vida. Ela ofereceu ajuda. Essa senhora foi até a minha casa, no horário combinado, e arrumou tudo o que estava desarrumado. Antes de sair, eu a agradeci muito e ela disse que imagina, ela tem um filho e que fez por mim o mesmo que teria feito por ele. Por coincidência, ou não, ela o chamou até o meu apartamento, para que fossemos apresentados. E adivinha quem era? Você! 


A partir desse dia, nos adicionamos nas redes sociais e começamos a trocar likes. Você começou a conhecer um pouco sobre mim e eu um pouco sobre você. O fato de sermos vizinhos, contribuiu para um vinho com pão aqui em casa. Um rolê totalmente aleatório, sem termos combinado nada, mas que aconteceu. E assim fizemos. Conversamos. 


Você pediu para que eu me despisse de desconfiança. E se mostrou despido de julgamentos. E só assim foi possível. Conversamos.


Foi rápido, mas foi incrível. Pude confirmar suas histórias e assim entender quem era. Você prometeu voltar, mas não disse quando. E esse novo dia chegou. Novamente rápido, novamente incrível. E a partir daí eu já morria de admiração por você.


Até que a verdade veio à tona. Foi durante a pandemia. Logo no início você me procurou e perguntou seu eu precisava de ajuda. Eu disse que sim. E prontamente você se pôs a me ajudar pessoalmente. Conversamos diariamente, o dia todo, por muitos dias, enquanto o número de mortos crescia. E conversar com você era um aprendizado que fazia muito bem. Contar com sua disposição em me ajudar naquele momento, era algo que inevitavelmente se transformaria em amizade. Até o que o número de mortos começou a reduzir e as nossas vidas a voltar ao normal, dando fim às nossas conversas. Consequentemente afastando a nossa amizade. Afinal de contas, tínhamos muito trabalho a fazer.


E é por isso que te escrevo hoje. Coloco essa carta sob sua porta, para que a leia quando chegar. Quero que saiba que não consigo mais viver sem a tua amizade. E que a nossa amizade não é só de uma via. Que eu estou aqui para o que precisar, pois conheço teu trabalho e sei que posso ajudar. E agradecer por tudo o que fez e faz por mim. Sei que ainda fará muito mais, e só por isso me sinto inferior, embora você mesmo tenha me ensinado que o que sente por mim é bem maior do que o que sinto pelas coisas mais belas desta Terra. Enfim, você é incrível e gostaria que soubesse que sinto isso de ti, pois nunca sabemos o dia de amanhã, principalmente numa pandemia.