Thursday, March 17, 2005

Aplause

Adonai compra uma carta. Era tudo o que ele precisava, muito embora não fosse o que ele queria. Um coringa naquele instante fez o tempo parar. Alguns pensativos minutos... Pressionado pela mesa, Adonai suja para sempre sua única canastra. Bate, mas com os pontos reduzidos pela metade, nada leva.
Na praça, o artista popular recita alguns versos. Porém em vão. Ninguém se aproxima, ninguém colabora. Tira do bolso um isqueiro com o qual acendia os tranqüilizantes cigarros. Do mendigo que dormia ao pé da igreja tomou de assalto a garrafa plástica de pinga. Tirou o chapéu, levou-o ao chão. Proferiu em forte e baixo tom:
- “Aproximem-se, vamos, aproximem-se. Venham ver com seus próprios olhos. Em poucos segundos atearei fogo em meu próprio corpo e sairei vivo! Vamos, aproximem-se.”
E em poucos segundos uma pessoa parou. Outra que passava, viu esta parar e também parou. Logo em seguida, outro parou com curiosidade. Não demorou muito e uma multidão se amontoava ao redor do artista. Grande maioria, nem sabia o que estava acontecendo, tamanho era o volume de pessoas. Todos se espremendo nas pontas dos pés.
Saindo do jogo, com a sensação de ganhar, mas não levar, Adonai espanta-se com a multidão de desocupados curiosos na praça. Continua seguindo seu caminho, até que ouve o artista entre a multidão ovacionada:
- “Vejam, preparem-se! Neste momento estou derramando álcool em meu corpo. Estão preparados? Isto é um isqueiro, no três pegarei fogo e acreditem: sairei vivo! Um, dois...”
Adonai percebe a loucura do homem, percebe que o mesmo quer se matar em praça pública, aos risos do povo. Um espetáculo sem gorjetas.
Antes do três Adonai já estava no meio da roda e com o isqueiro do artista na mão, impedindo o terrorismo.
Aos poucos a multidão se desfez, em quanto Adonai discutia com o artista sobre vida e morte. Sobre valores e questionamentos. Sobre virtudes e defeitos. Sobre amor e desprezo. Sobre sabedoria e fraqueza. Sobre alma e matéria. Sobre vida e morte.
Atônitos, a platéia aplaudiu de pé o espetáculo. Alguns não acreditavam na precisão do ensaio. Texto perfeitamente decorado. Dramatizações dignas de novela das oito. Texto apropriado e inusitado, acoplado às necessidades daquele povo. Proporcional às moedas e notas que transbordavam no chapéu.
Na noite anterior, Lúcia Len fazia as últimas alterações na produção da pré-estréia de sua peça. Lúcia Len achava ter produzido a galinha dos ovos de ouro. Tinha certeza que seria sucesso de bilheteria. Viajaria o país em turnê, por longos anos. Cecília, atriz de carreira invejável, convida Lúcia Len para um jantar, discutir os últimos detalhes, descontrair, assistir um filme, relaxar.
Já intencionada, Cecília acorda saudável. Lúcia Len intranqüila, toma destino à igreja, no intuito de confessar sua primeira noite de amor com uma também mulher. Desconfortável, presencia aquela cena na praça, a qualidade da peça, a reação da platéia, a tímida arrecadação para tamanha glória. Conversa com os atores no intuito de produzir aquela peça. Promessa certa de viajar em turnê pelo país por longos anos ganhando fortunas.
Os dois atores, que até então não haviam sido apresentados, que até então tinham suas vidas na corda bamba, assinam o contrato.
Anos depois, devido a uma longa noite de jogatina dispendiosa, Adonai faltou ao ensaio. O ator popular morreu queimado frente ao silêncio das cadeiras vazias.

2 comments:

Anonymous said...

Jogatina, fogo e lésbicas. Mandou bem.

Anonymous said...

Orra... pegou pesado... Texto intenso, e mto bem escrito!
Meus parabéns! =P
Beijão!
- só quem tem a mesa arrumada ganha beijão, hohoho